V – A implementação do PAAS /O processo de ordenação
O projeto PAAS, assim elaborado, submetido e aprovado pelo Programa Petrobrás Ambiental, passou então a contar com os recursos para a sua implementação no prazo considerado ( dois anos).
A implementação do PAAS em última instancia seria a implementação das ações constantes no projeto submetido, listadas para os objetivos específicos do projeto, constantes do quadro I anexo.
Para tal seria necessário que todas as entidades arroladas no plano de ação, no script montado, estivessem dispostas a assumir os papeis a elas previamente consignados pelo NEICT/UFF.
Agora, porém, na fase da implementação, o que se passa é um processo de ordenação, o que se espera é que as entidades arroladas mantenham na ordenação os mesmos papeis que os a elas tinham sido atribuídos pelo NEICT/UFF e com os quais elas tinham dado uma anuência prévia por meio de manifestações de interesses (formal ou mesmo informal).
Na literatura especializada existem documentados inúmeros casos de insucessos ocorridos na fase de implementação. Não é assim o que aconteceu com o PAAS. Como já dissemos ele foi implementado com sucesso.
De qualquer forma acreditamos que ensinamentos possam ser extraídos do nosso estudo de caso na consideração do seu processo de implementação através da ótica da Teoria do Ator-Rede.
Uma leitura do acontecimento via abordagem ator-rede nos informaria que uma satisfatória ordenação entre os atores envolvidos (humanos e não-humanos) foi alcançada, ordenação esta que persistiu ao longo do tempo de duração do projeto (dois anos).
A consideração dos atores não humanos permite um entendimento mais rico do processo de ordenação, como podemos exemplificar considerando as fossas sanitárias que deveriam ser instaladas nas casas dos moradores (Ação 1.1 no Quadro I anexo)
O modelo de fossa selecionado pelo NEICT foi o fossa biodigestora, desenvolvida pela EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que disponibilizou documentos de projeto, textos e vídeos explicativos das fases de instalação e operação das fossas. Tecnicamente impecável. Economicamente viável. Ecologicamente sustentável.
As fossas biodigestoras, no entanto, não foram percebidas pelos moradores como meros artefatos técnicos. Houve, para espanto do NEICT bem como da própria EMBRAPA, uma recusa em aceitar a instalação dessas fossas.
Para compreender melhor a reação dos moradores, é preciso contextualizar a questão fundiária que se mantém em aberto na região do Parque Nacional de Itatiaia. Sendo parte da APA (Área de Proteção Ambiental) da Mantiqueira, a atual legislação brasileira proíbe construções na região e estabelece restrições para atividades produtivas. No entanto já existiam muitas famílias instaladas na região. Entre os moradores há aqueles que temem a desapropriação de suas terras pelo governo e outros que esperam receber indenizações do governo pelos anos de restrição e prejuízo à sua atividade produtiva em função da mudança na legislação.
Este contexto explica em parte a reação inicial de hostilidade de vários moradores às ações 1.1, 1.2 e 1.3, respectivamente: Cadastramento de famílias no programa; Aquisição, instalação de fossas e Treinamento e conscientização para a utilização das fossas. Muitos desconfiavam que a oferta de instalação de fossas fosse apenas um pretexto para identificar e cadastrar famílias residentes na APA da Mantiqueira e temiam que essa informação fosse usada para desapropriar suas terras.
Para transladar o interesse da comunidade, foi preciso uma interação habilidosa do NEICT junto à Associação Comunitária dos Amigos, Vizinhos e Moradores da Serra Negra e ao Centro Comunitário Rural do Campo Redondo, convencendo as lideranças comunitárias de que o Projeto não tinha nenhuma relação com a questão fundiária. Além disso, foram inseridas no projeto algumas condições para que os moradores pudessem ser incluídos em outras atividades nas quais o interesse apareceu logo de início. Por exemplo, participação de membros de uma família nas atividades de treinamento, bem como a possibilidade de contratação como monitores do projeto foi condicionada à construção de fossas sanitárias nas casas.
Logo vários moradores reverteram o posicionamento, passando de hostil a interessado, e se ofereceram para cadastramento no projeto. Inclusive a meta de instalação de 50 fossas foi superada. Entre 2004 e 2006, foram instaladas na região 78 Fossas Biodigestoras em unidades familiares previamente interessadas. O modelo de fossa selecionado pelo NEICT adotou a tecnologia desenvolvida pela EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que disponibilizou documentos de projeto, textos e vídeos explicativos das fases de instalação e operação das fossas. A maioria destas fossas está instalada em residências de famílias de produtores rurais. Além da melhoria das condições de saneamento, outro fator que motivou a translação de interesse dos moradores foi a possibilidade de reutilização do efluente como fator de incremento na produção agrícola, utilizando-o como biofertilizante
A Criação e a Manutenção de um viveiro de mudas de árvores nativas também era um ação prevista no projeto (Ações 2.1 e 2.2 no Quadro I anexo). Quando se inicia a implantação do projeto, notou-se uma indiferença por parte dos moradores, uma falta de entusiasmo por parte da comunidade, que não via nenhum benefício imediato nesta ação, alem da recuperação da vegetação.
Foram os próprios moradores, que propuseram uma maneira de tornar as mudas algo mais atraente do que um simples, embora importante, ente do mundo vegetal, com propósitos ecologicamente corretos. Com vistas a conferir às mudas um valor econômico, foi proposto que famílias voluntárias fossem treinadas pelo SENAR em curso de viverista e recebessem o material necessário para produzirem mudas em sua própria casa. As famílias seriam então remuneradas pelo projeto em função da quantidade de mudas plantadas em sua própria propriedade ou em propriedade de terceiros interessados. Os monitores do projeto (equipe formada por moradores e membros do NEICT/UFF) seriam convocados pelas famílias para aferir, no local, a quantidade de mudas plantadas e autorizar a remuneração equivalente. O NEICT/UFF negociou então com a Petrobrás e as Ações 2.1 e 2.2 foram implementadas via essa reformulação. Ao final da fase de implementação do projeto, algumas famílias tornaram-se produtores e distribuidores de mudas.
Fossas sanitárias, mudas, Associação de Moradores, ou qualquer outro ator, na ótica da abordagem ator-rede, quando constitutivos de uma rede, se definem e são definidos por esta própria rede. Já tínhamos comentado isso. Quando ordenados, cada ator é visto como desempenhando um papel que se define pela sua participação na rede.
Vejamos o caso da Prefeitura de Itamonte. Recordamos que quando do período da montagem do projeto (construção do script), o NEICT/UFF trabalhou incessantemente para conseguir carta de apoio das instituições que estariam envolvidas quando da apresentação da proposta ao Programa Petrobrás Sustentável.
Pois bem, nesta hora a prefeitura relutou muito em assinar a carta de apoio. Mais tarde, quando da implementação do projeto, ao perceber do sucesso com que a implementação estava sendo feita, ela passa a assumir na rede um papel atuante, oposto ao papel anteriormente assumido (antes da ordenação acontecer), de indiferente.
Por um papel atuante estamos querendo dizer um papel interessado em colaborar para o sucesso do projeto, para a implementação do mesmo. Para que a mudança de papel se concretize a prefeitura buscou então indicar representantes seus mais afinados com essa nova postura. Via de regra, mudança de papel tem como reflexo mudança de porta-vozes, de representantes, em busca daqueles mais afinados com o novo papel a ser exercido.
Essa mudança de papel teve reflexos quando da implementação da Ação 3.1 que tratava da instalação de PEVs (pontos de entrega voluntária) de lixo, e da aquisição de veículo para coleta de lixo. O problema do lixo era um problema sério para a comunidade, o lixo vinha se acumulando na região, gerando insatisfação dos moradores, riscos a saúde e degradação do meio ambiente.
Na medida em que a Prefeitura passou a ter um papel mais atuante na implementação do PAAS, ela realizou o investimento inicial (ação 3.1) e mobilizou a população através da ação 3.2 (Treinamento e conscientização dos moradores para encaminhar o lixo para os PEVs).
Da análise do processo de implementação do PAAS via teoria ator-rede emerge, como vimos, uma maior compreensão do que seja um processo de ordenação, das diferenças entre um ator enquanto participante de uma rede e fora dela, e de como e por quem os atores são representados (os porta-vozes dos atores).
Um outro importante ponto se refere ao poder de um ator em se empenhar para que o processo de ordenação ocorra de forma satisfatória aos seus interesses. O que tem a teoria ator-rede a nos dizer a esse respeito?
Exemplificando melhor, podemos depreender da narrativa que a implementação do PAAS se deu devido ao poder do NEICT/UFF em comandar o processo de ordenação?
A resposta é não, o que a teoria ator-rede coloca é que o poder do NEICT/UFF foi algo adquirido ao longo do próprio processo de ordenação e não algo inerente ao próprio NEICT/UFF. Ele se tornou forte, o que é completamente diferente de dizer que ele era forte.
O papel da empresa Petrobras na rede do projeto, enquanto financiadora, incluiu a definição de regras, a seleção de projetos, o controle da realização e dos resultados das ações previstas, a renegociação de algumas metas do projeto. Nenhum funcionário da Petrobras participou do processo de construção da proposta de projeto, mas como descrito anteriormente, as regras do Programa Petrobras Ambiental influenciaram os movimentos dos demais atores neste processo. A partir da seleção do projeto PAAS e da disponibilização de recursos, a Petrobras tornou-se um ator interessado na implementação do projeto.
Houvesse a Petrobrás ficada insatisfeita com o andamento do projeto, ou seja, com a implementação das Ações, o projeto seria muito provavelmente abortado, com a suspensão do desembolso dos recursos. Como já tínhamos adiantado, no entanto, a Petrobrás ficou satisfeita, mesmo aceitando a renegociação de algumas ações e metas, e o projeto foi implementado com sucesso.
A Petrobras, por exemplo, aceitou a eliminação da Ação 7.2 (Capacitação de moradores e guias locais em técnicas de montanhismo), face ao posicionamento hostil da comunidade em relação a essa ação . A maior parte da comunidade considerava que esta ação consumia recursos do projeto que beneficiariam pouca gente. Além disso, os guias locais que não eram formalmente capacitados, não percebiam esta ação como necessária nem como oportunidade de diferenciação. Os guias existentes temiam que a capacitação de novos guias fosse reduzir sua renda média atual, uma vez que concorreriam pelos mesmos turistas. Com a superação da demanda prevista para instalação de fossas, a comunidade e o NEICT decidiram negociar com a Petrobras a eliminação da ação 7.2 e a transferência deste recurso para instalação de mais fossas. A Petrobras concordou com facilidade, uma vez que a instalação de fossas era a ação do projeto mais diretamente alinhada com uma das linhas do Programa Petrobras Ambiental (gestão de corpos hídricos superficiais e subterrâneos).
V. Conclusões
Da análise do processo de implementação do projeto de sustentabilidade ambiental (PAAS) apresentada neste trabalho algumas conclusões merecem destaque, derivadas do exame do processo na ótica da Teoria Ator-Rede, e que nos parecem úteis para gestores de processos desta natureza..
Assim fazendo fomos capazes de pensar o processo de implementação como um processo de ordenação com vistas a uma estabilidade muitas vezes precária e nem sempre atingida.
A rede assim constituída tem nela seus atores que se definem em função da associação com os demais na rede, atores estes também que são ao mesmo tempo definidos pela mesma rede.
Esse entendimento é importante principalmente pelo derivativo dele, que os atributos dos atores em rede são resultantes da participação deles na rede. É ai que reside a principal diferença entre a fase de construção e a fase de implementação do projeto. Na implementação, atores podem sair fortalecidos ou não em função da ordenação que se estabelece. Sem duvida o NEICT/UFF saiu fortalecido, o que é bem diferente de dizer que a ordenação se deu porque o NEICT/UFF foi forte, como sendo um atributo dele a despeito da rede em que ele se fez presente.
No processo de construção não acontece a formação de uma rede no sentido de uma estabilização de um processo de ordenação. No nosso caso, o que houve foi uma articulação por parte do NEICT/UFF envolvendo um a um diversas entidades buscando adesões via manifestação de interesse. O NEICT/UFF foi de fato convincente para envolver todos, cada um a seu turno e assim sendo capaz de montar o PAAS.
Vale também destacar o fato de que atores não-humanos importam muito no processo de ordenação. Lembramos o papel da fossa séptica no caso, ora visto como um ponta de lança da secretaria da fazenda e ora visto como uma simples fossa séptica, útil para fins ambientais, prevalecendo na estabilização da rede este último atributo.
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